"Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
*Alberto Caeiro

quarta-feira, agosto 29, 2007

Quase

entre papéis, um envelope para ti. semi-fechado. um evelope com coisas lá dentro. um postal por escrever. um caderninho de folhas brancas e capa preta. também por escrever. um bilhete de metro, obliterado numa das muitas viagens por lisboa. diz que é um bilhete simples, de uma zona. e foi validado em julho de um ano qualquer. o importante é que está validado. nas suas costas, escrevi qualquer coisa sobre as mãos e a distância. no mesmo local onde diz "bilhete caducado". foi às 21h49. no envelope havia ainda uma prata de chocolate dobrada e uma crónica do José Luis Peixoto para o Jornal de Letras de Junho. é uma fotocópia de uma fotocópia que me foi enviada.acho que é daquelas crónicas que deviam circular por muitas mãos e por muitos olhos. porque fala de nomes, de tempo, de palavras, de lábios, de encontros, de distância. de beijos. aproxima-te, sussurra por entre linhas.
entre papéis, um envelope para ti. mas nunca foi verdadeiramente para ti. foi para a ideia que eu fazia de ti. para me convencer de que tinha alguém com quem partilhar pequenas insignificâncias dos dias. alguém com quem sorrir, de vez em quando. alguém com quem viajar de metro, passar por todas as estações, escolher as mais bonitas, validar todos os bilhetes possíveis. coisas simples que nos tornam cúmplices. coisas vulgares que nos tornam humanos. olhos nos olhos, contar-te-ia todos os meus pensamentos mais secretos. mesmo aqueles que nos deixam de faces coradas e de olhar descaído no chão, à procura de qualquer carica perdida para pontapear e desviar a atenção.
se a descoberta deste envelope tivesse sido daqui a muitos anos, certamente não me lembraria do motivo da sua existência. não tem remetente. não tem nome. seria mesmo para ti?
ah, e havia ainda um balão azul. imagino porquê. porque não se consegue guardar num envelope um pedaço de nuvem, nem um fragmento de céu.
quando te voltar a ver, não me perguntes pelo envelope, semi-fechado, onde me guardei dentro. faz como se não soubesses de nada. não era para ti, já o disse. e até porque já rasguei o envelope, enchi o balão de ar e comecei a rabiscar umas letras no postal. até porque o bilhete de metro já não tem validade e a prata já não cheira a chocolate. até porque o Peixoto, entretanto, já escreveu outras crónicas. sim, faz como se não soubesses de nada.encaremos tudo isto assim: como uma verdade quase verdadeira*.

*verdades quase verdadeiras é o título da coluna onde José Luis Peixoto escreve as suas crónicas no Jornal de Letras.

4 comentários:

Anónimo disse...

tenho envelopes assim.
esquecidos, e dentro deles, folhas de linhas longas de palavras, frases interrompidas, que não passam de apenas esquecidas, ou que fiz por esquecer.

penso, que todos temos envelopes assim.

Fernanda Passos disse...

Lindo. É como se a língua secasse de tanto tentar selar o envelope que guardava o teu coração.
Lindo mesmo. Parabéns.
Te vi no Blog de Natália e resolvi te conhecer.
Bjs.

V. disse...

Sem palavras... Já há algum tempo que passo por aqui, mas este texto tocou-me mesmo... tenho de o dizer.

Gosto muito deste blog.

Beijinhos*

f o g disse...

tabela de redução de polegadas a milímetros. reduz, um ano, dois, tres anos, reduz, pára, pára, chega. olha agora a verdade quase verdadeira do corpo arregaçado à corrente de ar dos dias novos, olha as novas rugas do corpo a sentir novos azuis.nao reduzas mais. não vai desaparecer.

mar isa

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a entropia é a minha religião. alterno a leitura da bíblia com a interpretação de mapas e mãos. bebo, preferencialmente, azul. tenho, ainda, o hábito de escrever cartas_

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