"Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
*Alberto Caeiro

quarta-feira, outubro 31, 2007

o espelho não me quer ver


Teresa Sá


às vezes, temos que estar um pouco desencontrados de nós mesmos.

Hugo Amaral

segunda-feira, outubro 29, 2007


©ana

no fechar das pálpebras, ainda o recorte nítido daqueles esqueletos de árvores de um qualquer verão com fogo dentro. trago as mãos nos bolsos, fechadas contra o frio. andam por aí a vender o outono: castanhas e marmelos, as últimas uvas, dióspiros, mel. levo os dedos ao pote e vem-me à boca o cheiro das folhas avermelhadas a caírem na berma das estradas. a cor do sol a despenhar-se vale abaixo. o rumor da canção que acendi despropositadamente só para evitar um cigarro. aquele vinho enganou-se na morada. tinha sabor de planície. de seara alta penteada pelo vento. talvez seja apenas uma leve impressão minha. insensatez. ou, então, esta terá sido mais uma viagem em sentido contrário.

Brandoa, second skin

Abandonamos fisicamente o lugar onde crescemos mas ele continua a deitar-se connosco. Por dentro. Do avesso. Mesmo na distância, ouvimos-lhe a voz. Trazemos na pele a marca dos dias por que passámos. Das ruas que atravessámos na eminência do atropelo. Dos campos onde jogámos à bola e às escondidas. Das árvores por onde queríamos escapar ao anoitecer. Desejámos tantas vezes que o sol não se escondesse. Queríamos dormir fora das casas onde os nossos pais nos esperavam à mesa do jantar. As janelas abriam-se sobre a cidade distante.Ali, ao alcance do corpo, campos de trigo e de papoilas onde nos deitávamos nas tardes de verão. Eu queria vestir manga curta quando vinham os primeiros raios de sol quentes da primavera. A minha mãe não deixava. Eu queria misturar-me com os outros na dança das brincadeiras de rua quando ainda havia lama nos sapatos se chovia. Quando ainda nos ríamos e desenhávamos a giz jogos no chão. O nosso bairro ficava na rota dos aviões e, nos bancos de escola, quem tinha orelhas grandes era obrigado a baixar a cabeça quando algum passava a rasgar o sossego. Eu não sabia que crescer tinha que ser abandonar essas ruas e perder o corpo pelas outras que se avistavam ao longe das janelas. Eu não sabia que me iriam custar tanto os regressos. E quando li este poema o tempo fez-se de novo lá atrás. E só quem lá esteve entenderá.




O jardim da Noémia
(Brandoa)


Ao redor da Árvore das crianças adultas
Há uma roda que tem dentes de homem,
Um escorrega que é uma lâmina que finda em queda,
Areia molhada com as cores da mentira.

Ao redor da Árvore das crianças adultas
Há um brinquedo de pneus que esconde braços plantados com seringas,
Um lago que borbulha de abortos de princesas,
Banquinhos vermelhos onde se sentam os mortos.

Subo a rua que tu desces.
Desço a rua que tu sobes.
Disparo balas com os dedos
Que te ferem de morte.
Os teus lábios vermelhos
São o meu primeiro rebuçado de sangue
E quando me apertas
Sinto que não me queres mal.

As coisas que disseste ao ouvido da minha boca são as coisas que
me irão fazer subir à Árvore das crianças adultas e nunca mais
descer para ao pé dos outros.


Fernando Ribeiro (Moonspell), Diálogo de vultos, Quasi



Fernando Ribeiro nasceu em Lisboa a 26 de Agosto de 1974. Cresceu na Brandoa e estudou Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa. É vocalista e letrista da banda Moonspell. Publicou três livros de poesia: Como Escavar um Abismo (2001), As Feridas Essenciais(2004), e o Diálogo de Vultos(2007). Escreveu as introduções para Os Melhores Contos de Howard Phillips Lovecraft, editado em 2005, e traduziu para português a biografia em BD Lovecraft. Escreve ainda para a revista de metal portuguesa LOUD! a coluna mensal intitulada The Eternal Spectator.

sábado, outubro 27, 2007

às vezes, ainda seguro entre os dedos o cigarro que já não me apetece fumar. assim, como quem acende uma luz e a prende ao corpo para ir acendendo estrelas no caminho da noite.



lume?

talvez o isqueiro seja o eterno pretexto para se fingir que já se disse o que não se quer dizer.


graceful decadence

e o que fazer quando, para além de qualquer segredo, acender um cigarro parece ainda o único gesto capaz de quebrar a indefensabilidade do corpo?





"you can doubt anything
if you think about it long enough"


ani difranco, reckoning

quinta-feira, outubro 25, 2007


Cig Harvey

preciso de segredar-te o meu segredo*


*João Manuel de Oliveira Ribeiro
- vamos fazer um filme.
- sabes? o gato enfiou-se debaixo dos lençóis com medo da chuva.
- a sério.vamos fazer um filme.
- dás-me um cigarro?
- se estivesses num filme qual seria a tua personagem?
- pára com isso.
- apetece-te uma maçã?
- não. apetece-me um cigarro.
- apetece-te um beijo?
- assim do nada?
- vem para a cama comigo.
- nunca conheci ninguém tão directo.
- anda tudo reprimido neste mundo.
(risos)
- tens olhos de wagon-lit.
- o que é isso?


"Please don't reproach me
For how empty my life has become.
"
PJHarvey, Broken Harp, White Chalk

quarta-feira, outubro 24, 2007

Já não me lembrava de como era acordar com chuva a bater nos vidros da janela e os gatos no quarto a esconderem-se debaixo dos lençóis.
matei há pouco uma aranha no meu braço. de lá para cá, ela ainda se passeia pela minha pele, como uma parte arrancada de mim, da qual não consigo sentir saudades mas medo. há coisas em nós que nos sobrevivem pelo medo. deixam de ser ficção com a mesma facilidade com que as aranhas tecem as suas teias e resistem ao inverno.

terça-feira, outubro 23, 2007

Eu: me, myself and I

uma experiência de blogue diferente. a desconstrução do eu. na pele. à luz.

eu-blogue
respirar os dias no avesso de um vôo



afundar os ramos, os braços, as mãos
no azul


o céu a tombar sobre a terra

©ana

e a tarde a acontecer como pequenos estilhaços de verão
sobre a tranquilidade das águas

segunda-feira, outubro 22, 2007

les chansons d'amour



de Cristophe Honoré
com Louis Garrel, Ludivine Sagnier, Clotilde Hesme, Chiara Mastroianni, entre outros.


Se os bons actores bastassem para fazer um bom filme aqui estaria um exemplo perfeito dessa relação condicional. Mas não. Nem sempre. E tanto Louis Garrel como Ludivine Sagnier podiam perfeitamente estar no filme errado e nós na sala de cinema errada, à hora errada, para a sessão errada. Mas não. Nem sempre. Este filme é um exemplo de como bons actores fazem bons filmes. Sobretudo, quando há outros bons actores em contra-cena, quando há um bom realizador atrás da câmara, quando há uma cidade como Paris a servir de paisagem. E mais: quando há um argumento a sustentar linhas de diálogo que nos transpõem para outros espaços, para outros tempos. Para nós. Les chansons d'amour pode ser uma revisitação dos musicais, género que até não aprecio muito, mas agarrou-me, desde o início, desde o genérico, com as ruas de uma cidade que não conheço a desfilarem entre o dia e a noite. Desde a primeira cumplicidade de olhares. Eu gostei de tudo. Desde a primeira dança de cadeiras ao bailado pelas ruas, entre margens de corpos que dividem a mesma cama. Aqui e ali um sussurro como se aquelas canções fossem também muito minhas. E são. Porque quando se canta "não tenho nada a fazer entre os teus braços" ou "ama-me menos mas por mais tempo" é difícil não reparar no quanto do que é dito faz eco nas paredes na minha própria história.
Mais uma vez, se o filme roça o piroso ou o lamechas (quase) insuportável, não me importo, admito que gostei.Muito. Foi uma escolha perfeita para terminar um Domingo. Nem sempre se acerta na hora, nem na sessão. Mas desta vez eu acertei. E hei-de voltar a estas canções. Em francês. Sem legendas portuguesas a distorcerem as palavras-poemas.

sexta-feira, outubro 19, 2007

mutatis mutandis

"Isto é o que hoje é". Para mim uma desculpa para isto que aqui é hoje, que aqui enterro sem precisar de esgravatar a terra. Ter um blogue é a afirmação mais completa de solidão e, simultaneamente, a forma mais simples de a partilhar. Ou seja, a solidão que deixa de o ser, não por altruísmo mas, muito pelo contrário, por essa tendência narcísica que todos temos, em doses diferenciadas, de contemplarmos o nosso próprio reflexo. E tenho a certeza que do outro lado do espelho não me falam, não me olham, por mera vontade de entrar por mim adentro mas, pela simples razão de ser assim um pretexto para se olharem um pouco por dentro também.
O dia-a-dia impõe-se. Quem não fecha os olhos procura encontrar-lhe beleza nos pormenores. Procura apaixonar-se aqui e ali. É verdade, como em tempos me disseram, apaixonamo-nos todos os dias um pouco. Um pouco mais. Mas a paixão atormenta. Aprisiona. Vicia. O belo vicia. Porque nos engrandece o espírito.
E hoje é também isto. Eu aqui e se estender o braço ficar outro corpo ao alcance da mão. Ser o espelho os próprios olhos do outro. A fragilidade dos outros aqui bem próxima, sem virtualidades que a deformem. Daqueles que andam por aí a perguntar a estranhos onde foram buscar o seu sorriso. Combatem a própria fragilidade embaraçando, incendiando a ponta do rastilho. Nunca saberei como lhes responder. E também eu encontro neles um pretexto para me deixar olhar por dentro. Narcisicamente.

Só temo o dia em que me despenharei sem respostas.Por que não soube eu nunca perguntar.

quinta-feira, outubro 18, 2007

autumn by the sea

falo baixinho em frente ao mar,
e quando uma gaivota vem rente escutar-nos
calo a voz
fico em silêncio
é nessa altura que te dou a mão
te puxo para perto
te canto ao ouvido

as mãos fechadas
uma concha escondida

e falo baixinho
baixinho

não vá o mundo inteiro
ouvir

e querer ficar



©ana

quarta-feira, outubro 17, 2007

Trailers

“Poeticamente Exausto, Verticalmente Só - A História de José Bação Leal”





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Mulheres Traídas[making of]



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A Naifa, Senoritas



enquanto bebo um chá de menta e vejo o frio chegar com as estrelas de outubro.

segunda-feira, outubro 15, 2007


©ana


Quando tirei esta foto à multidão anónima em Santiago, lembrei-me daquelas fotografias de casamento à saída da Igreja. Ainda hoje gosto de percorrer os olhos por essas fotos e perceber as mudanças. Quem partiu. Quem ficou. Quem cortou o cabelo. Quem engordou. Quem emagreceu. Quem está igual. Quem envelheceu. Quem ficou de costas. Quem se esconde atrás de outro corpo. Quem não (re)conheço. São autênticos retratos do tempo. Ali, alinhados nas escadas, numa ordem quase aleatória, a família, o sangue a passar de braço em braço, a prolongar as suas raízes chão adentro, o tempo a não perdoar rugas no rosto. O tempo a chamar para o esquecimento. São tristes essas fotografias. No entanto, toda a gente sorri.
A vida interior de Martin Frost, de Paul Auster, é um mau filme. Pergunto-me como é que se pode ser tão bom escritor e fazer um argumento tão pobre. Dói ver Irène Jacob vestida de um fantasma tão sem história.

Má opção para terminar o meu domingo fora de portas.

domingo, outubro 14, 2007

considerações domingueiras

Ontem impressionou-me a tristeza que vi nos olhos e rosto de uma criança de 4 anos. Fiquei a pensar no que faz crescer a tristeza, no que a alimenta. Fiquei a pensar naquela criança. Fiquei a ver-me crescer a mim.
E quando estacionei o carro à porta de casa, depois de mais um dia terminado,depois de mais uma noite a chegar ao fim, aquela canção velhinha, pirosa, do Leo Sayer,When I need You, na rádio, funcionou como o culminar perfeito de tudo: dos cigarros por fumar, dos fantasmas abandonados da noite, das trivialidades do dia, das saudades, da caipiroska ao som de rock'n roll...deu-me vontade de correr escadas acima, e procurar o conforto dos gatos, antes de amanhecer.
Acordei a pensar no que me falta fazer. Acordei e apeteceu-me oferecer um gato à criança de 4 anos de ontem. E foi dia de limpar as flores murchas das jarras.


Como diz a minha irmã, não vou conseguir mudar o mundo com a minha mania de sinceridade. Não é disso que o mundo precisa. Eu estou errada. A minha sinceridade é egoísta. Não interessa a ninguém. Só a mim própria. Porque também nunca serei sincera o suficiente, o bastante.

Mas, f*, hei-de passar mais um dia sem fumar!

sábado, outubro 13, 2007

1,2,3

1. É sempre o mesmo
é sempre uma outra coisa.

2. Por agora existo: mais logo tal-
vez pense.

3. É o tempo que tem pó.

Bernardo Pinto de Almeida


©ana

sexta-feira, outubro 12, 2007

não percebo a urgência da voz.há dias em que tudo é ruído. e a presença de um único corpo assemelha-se a uma multidão.

corte de cabelo

durante o dia cruzei-me com duas pessoas que mudaram radicalmente de corte de cabelo. será isto um sinal? ando com vontades estranhas. talvez vá até santiago conhecer estes familiares e pedir que me cortem o cabelo!


©ana,santiago de compostela

ainda não foi desta que encontrei a porta aberta. à terceira será de vez!

Espero que me oiças

Não me lembro de ter feito grandes pactos na vida. Mas lembro-me de tu e eu nos termos permitido qualquer coisa de muito semelhante a isso. E a regra dos pactos é deixarem de fazer sentido. O nosso não. Ainda diríamos, dedos sobrepostos, sangue contra sangue: és a minha certeza e eu sou a tua.

Foi esta a melhor forma que encontrei de te enviar daqui um abraço. De assinalar este dia. De o agarrar e fazer chegar a ti qualquer coisa de meu.

quinta-feira, outubro 11, 2007

Les Ballets C. de la B., Import Export



Foi ontem no Centro Cultural Vila Flor de Guimarães.
Há muito tempo que não via um espectáculo de dança assim. O que gosto na dança contemporânea é a permanente tensão que o corpo dos bailarinos expressa na interacção com o público, com os outros elementos do grupo, com os elementos do cenário, com o chão do palco. Uma luta corpo a corpo. Sem sangue. Mas com dor.
Bela forma de se deixar arrepiar numa noite de outubro, ainda quente.

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terça-feira, outubro 09, 2007

segredar-te o nome da terra
enterrar na cova das mãos
o sorriso
dois ou três cabelos
raízes
folhas secas
conchas do último verão

esperar que a noite desça
lenta
a colar-se-me à pele
em fio de estrelas

navegar o silêncio
dentro
fora
dentro

amarrar ao cais
o desejo de partir

segredar-te ao ouvido
este que é meu
o meu nome
- terra

nada mais


©ana

em escuta: por este rio acima, Fausto

segunda-feira, outubro 08, 2007

DocLisboa, 18-28 de Outubro 07

Espero poder ver alguma coisa deste doclisboa. Ainda que não consiga estar presente nestas exibições, não posso deixar de destacá-las:

Poeticamente exausto, Verticalmente só de Luísa Marinho

19 de Outubro, 16h30, Culturgest
21 de Outubro, 16h00, Cinema Londres


Mulheres Traídas [making of] de Miguel Marques

23 de Outubro, 16h00, Cinema Londres
24 de Outubro, 16h30, Culturgest


Programação DocLisboa
Nasceste numa manhã como se fosse um lugar branco
e as mãos entranharam-se em ti para te dar à luz.
Mas não te deram asas no dia em que nasceste.
Nem te deram luz. Deram-te uma ferida e um coração
de carne e tiveste que aprender a ver através das
superfícies. Não te disseram que morrerias, nem
te deram um lugar branco onde pudesses morrer.
Tiveste que aprender que nunca é de manhã quando
se morre e que as mãos já não se entranham em ti,
mesmo que morras luminosamente.

Deram-te à luz,
mas não te deram asas no dia em que nasceste. Nem
te deram luz. E tiveste que aprender sozinho o ofício
de morrer. E um dia pareceu-te excessivamente escuro
o mundo, excessivamente escuro para ser manhã. E a luz
a que te deram quando nasceste pareceu-te um clarão
fóssil, excessivamente longe para o ofício de voar.

José Rui Teixeira, assim na terra


As asas do desejo

quinta-feira, outubro 04, 2007


ana



3 anos a respirar esta cidade.


ainda me sinto a chegar a casa.
muito sobreviveu à distância dos braços, à ausência do olhar. o próprio corpo resistiu a afogar-se nas noites mais escuras. e vou acreditando que é possível fazer-se companhia, cicatrizar-se feridas, partilhar sorrisos, apesar dos 300 kms de asfalto irregular pelo meio. nenhum abraço é capaz de substituir outro abraço. isso eu sei. e o corpo às vezes cresce demasiado. transborda. rompe costuras. pede que lhe injectem esperança e calor. hoje quero deixar-me sufocar na certeza de que existo aqui. que sou casa. que vocês têm lugar à minha mesa. que não deixei de ganhar mesmo quando (me) perdi. três anos não foram três dias. foram casas. camas. corpos. bocas. olhos. pétalas.gargalhadas. dor. cimento. tijolo. vento. mãos.
ainda me sinto a chegar a casa. descalço os sapatos para sentir o chão.

sinto o chão.
sinto o chão.
sinto o chão.


hoje aqui.
amanhã ainda não.

quarta-feira, outubro 03, 2007


©ana


por mais que se façam contas, a vida é curta. não me ofereço agendas.
destes dias, levo o cheiro a nevoeiro e a mar das corridas na praia. o trajecto das gaivotas antes do começo da cidade. as conchas e as pedrinhas recolhidas da areia molhada. o Fausto a combinar com as cores do entardecer, quando o céu lilás faz de tecto do tecto das casas. tu e eu no tapete da sala, com chá e bolachas de aveia. a escolher discos, a rir de tudo e de nada. a partilhar páginas de livros. cartas. e fotografias.
e depois a chegada da noite. a chaminé da antiga fábrica a dividir o horizonte. as janelas iluminadas por quem se sente regressar.
descubro-te um pêlo de gato na cor da camisa. e entorno o chá entre a ideia de nos nascer um beijo.
às vezes penso que é disto que gosto. das histórias que nunca chegam a acontecer. porque as que acontecem acabam sempre demasiado cedo. disto. da sopa de lentilhas ao lume. do cheiro a pimenta moída. e a coentros. disto. de DeVotchka a chegar como um lamento. a explicar how it ends. do cigarro que ainda não acendeste.
por mais contas que se façam, a vida é curta.
e esta é a cidade das fábricas perdidas. restos de chaminés e de telhados guardados em fotografias. espalhadas no tapete. no chão da casa. por baixo dos pés, dos corpos enleados, dos cabelos emaranhados. "caracóis marítimos". pêlos de gato. miar de gato. sono de gato. mãos a começarem onde as minhas terminam.
e a chuva a lembrar-me da roupa a secar no estendal.
quem, para além de mim, para reconhecer mais esta grande mentira?
viro a página. "olhos azuis, cabelo preto"*. e o sono que não vem.
mas a sopa está pronta.
e tu acendes, finalmente, o cigarro.

há-de ser mais um dia para a minha colecção.

Olhos Azuis Cabelo Preto, Marguerite Duras

simão adivinha teresa


©ana

se eu me espreguiçar assim, vais perceber que te peço um beijo?

terça-feira, outubro 02, 2007

quando cheguei a casa era eu que precisava de ficar estendida na corda a secar.

viste o relâmpago? ao km 193.

" abro a janela, saio para a rua..."

quando te sentires vazio, apanha um Táxi e vem cá ter. mas evita os domingos.
É quando o gato se enrola na chuva, do lado de cá da janela, que me vem à memória o cheiro das cortinas. Talvez tenha sido numa tarde como esta. A chuva mansa a cair na rua. A noite a apressar-se a chegar aos olhos. Tu a tricotar no canto iluminado da sala. Eu não sabia que era possível reparar um coração com agulha e linha. Mas era assim que tu curavas os desacertos do teu. E quando o outono chegava, e quando caíam as primeiras chuvas de outubro, era com urgência que lhe reforçavas pacientemente as costuras.
Um dia cheguei-te de peito aberto. Tu pousaste a mão sobre a ferida e nada disseste. Em vez de agulha e linha, chamaste o gato para a lamber. Jamais sangrei do peito. Mas o gato sabe, tanto quanto eu, que é sempre mais difícil encontrar cura para aquilo que não se vê.

segunda-feira, outubro 01, 2007


outra lente que não a minha


instantes antes da viagem. de lá para cá, não sei bem por onde ando. nenhuma coordenada me situa. nem a manhã, nem a noite. pressinto o nevoeiro na ponta das asas. acredito que estou a ficar sem nada para dizer.

Ontem foi:

About me:

A minha foto
a entropia é a minha religião. alterno a leitura da bíblia com a interpretação de mapas e mãos. bebo, preferencialmente, azul. tenho, ainda, o hábito de escrever cartas_

Sopra-me ao ouvido: