Os cadernos de Malte de Laurids Brigge, romance de Rainer Maria Rilke, foi-me dado a conhecer e a ler neste último verão. Agosto trazia-me quase diariamente um apontamento escrito das páginas deste livro. Eu já esperava ansiosa que um novo parágrafo se me revelasse,por mail, junto com os cereais do pequeno-almoço. (Ou isso era do outro lado do atlântico?) Setembro chegou e a leitura ficou inacabada.
Hoje saí à rua com pouco dinheiro na carteira, passei pelo alfarrabista do costume e lá estava o livro, numa edição antiga, de 1975 (um ano antes de ter nascido). Na capa, uma manhã de Outono no Cais do Sena. Entrei. Estou fascinada com esta edição. Tenho problemas com o manuseamento de livros usados. Sinto a pele da cara a fervilhar. Apetece-me ir lavar as mãos com alguma frequência. Pergunto-me quem será a Ângela que comprou o livro em 1982. Por que o terá dispensado da sua estante. A minha, também em segunda, ou terceira mão, já curvada pelo peso, ganhou mais um exemplar e ri-se.
Abro ao acaso nesta página já lida:
"Já o disse? aprendo a ver. sim, estou a começar. Ainda é difícil.
Mas pretendo aproveitar o meu tempo.
Nunca tinha tomado consciência, por exemplo, da enorma quantidade de
rostos que há. Existem numerosas pessoas, mas os rostos são ainda
mais, pois cada uma tem vários. Há pessoas que usam um rosto durante
anos a fio e é claro que ele se gasta, se suja, se quebra nas rugas,
se alarga como as luvas que foram usadas em viagem. São pessoas
poupadas, simples; não o mudam, nem sequer o mandam limpar. Ainda
está bom, afirmam, e quem lhes pode provar o contrário? mas então
pode naturalmente perguntar-se: uma vez que têm vários rostos, o que
fazem com os outros? Guardam-no. São para os filhos. Mas também
acontece que os seus cães saem com eles. E porque não? Um rosto é um
rosto..
Outras pessoas colocam os seus rostos com uma rapidez incrível, um
após o outro, e gastam-nos. Primeiro parece-lhes que chegariam para
sempre, mas , mal fazem quarenta anos, o que têm já é o último. Tudo
isto tem, evidentemente, o seu lado trágico. Não estão habituadas a
poupar rostos, o último fica gasto ao fim de oito dias, tem buracos,
em muitos pontos é fino como papel, e então vai aparecendo
gradualmente o que está por baixo, o não-rosto, e é com ele que andam.
Mas aquela mulher, aquela mulher: estava completamente ensimesmada,
de cabeça inclinada para a frente, sobre as mãos. Foi na esquina da
rue Notre-Dame-des-Champs. Assim que a vi comecei a andar sem fazer
ruído. Quando os pobres se põem a pensar não se deve incomodá-los.
Talvez acabem por lembrar-se.(...)"
"Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
*Alberto Caeiro
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