"Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
*Alberto Caeiro

segunda-feira, abril 14, 2008

Digo-te por isso

Digo-te por isso
que não me obrigues a luz.
Que escrever não é fácil,
que viver não é fácil
quando começamos a frase a meio.
Que lavo a cara ao chegar tão tarde
e mesmo assim o dia não se despega,
e mesmo assim
tu não estás, ninguém está.
Que não tenho espaço na minha secretária,
na minha vida, na minha cama
para tanto espaço.
Que já me disseram urbana,
e nem por isso me disseram decadente,
e que eu gostei.
Que já me disseram
muitas vezes
disfarçadamente triste,
e que por isso, por ser triste, por
sermos todos tristes, não mo deviam dizer.
Digo-te por isso
que não era minha intenção dizer-te mais uns versos
tristes e sem luz, e por isso, só por isso,
não era minha intenção dizer-te nada.

Filipa Leal, O problema de ser norte

7 de Abril. Uns trocos na carteira e não resisto ao cheiro dos livros. Não resisto a algumas palavras. Quero saber o Problema de ser norte. Eu que vim do sul. Que trago a vida a crescer-me em bairros periféricos de cidades líquidas de cimento. Trago as ruas estreitas, escanzeladas, mal arrumadas de encontro aos prédios. Trago o corpo ainda a balançar num assento de bicicleta, sem abrir os braços para não perder o equilíbrio. Mãe, por favor, não me chames agora. Não tenho fome ainda. Ainda é dia. Não sei se algum dia será noite. É tão cedo, mãe. Eu fico.
Trago o Sul entranhado nas veias que irrigam o coração, que queimam o cérebro. O problema de ser sul é haver essa planície tão longa e triste que avisto da berma das casas, do começo da vila. Não me acabes já. Que não é tarde. E falta fogo.
O Problema de ser Norte é escrever como quem se esquece de alguém. Porque a escrita nada esquece. A escrita prolonga. E do amor, como da planície, reconhece-se o começo mas nunca o limite.
Eu escrevo para sentir que há vida aqui, aqui dentro. Mesmo que me cresçam cidades desordenadas nas veias. Mesmo que os olhos sejam grandes mas míopes, de rebordo negro, de cinza nos cantos, de fogos incompletos.
Eu não gosto de sofrer. Mas também detesto mentir.


O que eu queria mesmo era escrever para me salvar.
Para não ter medo.
Para te perder melhor.

Filipa Leal


Porque fazia sentido dizer. Sobretudo depois disto. E sabes? o meu exemplar tem um selo de 1 cêntimo colado na terceira página...

9 comentários:

Menina Limão disse...

tive medo disto e aconteceu mesmo. estava à espera da primeira pessoa a vir destruir a minha história, a vir desfazer a minha ilusão, mas não tão cedo. e tinha esperanças de que não fosse assim.

podias ter-me mentido. mas não apago.

ana c. disse...

repara: o selo foi dos pormenores mais bonitos que me fez comprar o livro. talvez o meu exemplar tenha sido, a esse nível, mais uma excepção.

Menina Limão disse...

ainda bem que o viste e que te fez comprá-lo, tal como fez com que eu o comprasse, mas, repara, a tua revelação elimina o carácter excepcional da minha descoberta. se o teu tem, todos têm, só que pelos vistos em páginas diferentes.

pzs disse...

Não faço ideia onde se colou o selo no meu livro...

Sei a beleza do que acabei de ler.
Senti o som destas palavras berrar na minha boca e o olhar desfocado pela emoção...

"...não era minha intenção dizer-te nada."

ulrich disse...

E do amor, como da planície, reconhece-se o começo mas nunca o limite.

uma frase muito muito bonita

adriano disse...

regressar ao teu blogue é como regressar a casa

S. disse...

Gosto deste sul enxertado num norte que também tento perceber...voltarei com vontade de me perder entre pontos cardeais.

Happy and Bleeding disse...

desfeitas ou não as ilusões, desvirtuados ou não os regimes de excepção, eu gostei mesmo foi da porra do 'texto'. muito bom.

V. disse...

que coisa mais bonita de se ler. :)

Mesmo que os olhos sejam grandes mas míopes, de rebordo negro, de cinza nos cantos, de fogos incompletos.
Eu não gosto de sofrer. Mas também detesto mentir.


eu sofro do mesmo mal.

beijinhos*

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a entropia é a minha religião. alterno a leitura da bíblia com a interpretação de mapas e mãos. bebo, preferencialmente, azul. tenho, ainda, o hábito de escrever cartas_

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