São quase onze e meia da noite e tocam à campainha. Eu, pés frios, pijama vestido, óculos a auxiliar a visão, recuso o convite para um passeio nocturno. É segunda-feira à noite. Não trabalho fora de casa. Estou recolhida a um canto na mesa da sala, a ler as teorias de Ulrich Beck sobre a modernidade reflexiva*. Os gatos esfregam-se no sofá, sonolentos. Enroscam-se pêlo contra pêlo. Do outro lado da janela desfila a voz da menina de sapatos vermelhos. E a campainha toca. Levanto-me a pensar na vizinha do andar debaixo. Desde que se me entupiu a banheira e água lhe pingou do tecto penso sempre que é a vizinha debaixo a tocar à campainha. Mas não é. Estabeleço uma conversa quase telefónica pelo intercomunicador. Quase cedo. Mas está frio. Quase cedo. Mas é tarde. Quase cedo. Mas preciso ler, ler, ler. Quase cedo. Mas o outro lado desiste de querer que eu ceda.
Regresso ao meu canto na casa. Regresso à Ana cumpridora de todas as regras que ainda nem sequer foram inventadas. À Ana enleada em leituras. À Ana um nome na pauta. Penso se calhar devia ter ido. Se fosse pensaria se calhar devia ter ficado. E recordo-me de alguém, um dia, depois de alguns anos sem me ver, me ter dito num encontro ocasional em Lisboa Para a próxima que cá vieres telefona-me para combinarmos um café. Gostava de estar contigo. Estás diferente. Alguém, um dia, enganou-se. Eu não estou diferente. E mesmo se estivesse isso não era coisa que se fizesse notar à vista desarmada, pelos piercings, ou pela forma de vestir, ou pelo cigarro pousado junto à mão.
É nestas pequeninas coisas. Nestas indecisões quando nos surpreendem na campainha quase às onze e meia da noite. Neste acomodar do rabo à cadeira. Neste fixar de olhos nas teorias de Ulrich Beck and friends. Neste medo de não ser capaz que revolve as tripas. Neste conforto do pijama e das pantufas. Neste estar só com gente à volta. É nestas pequeninas coisas, dizia eu, que continuo a ser o que sempre fui. E quem me conhece segue caminho noite dentro. Mas há-de voltar.
Agora também já sei que nem só da vizinha debaixo vive o toque da minha campainha. E numa destas noites levantarei o rabo da cadeira e, mesmo de pijama, sairei para a noite da rua.
Nota para as visitas mais ou menos nocturnas: as conversas pelo meu intercomunicador estão audivelmente ao alcance de qualquer outro ouvido alheio da vizinhança.
*a sociedade torna-se reflexiva, o que quer dizer que se torna um tema e um problema para si mesma
Ulrich Beck et all, modernização reflexiva
"Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
*Alberto Caeiro
terça-feira, março 25, 2008
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9 comentários:
e depois ficamos sempre a pensar isso, do 'e se tivessemos ido?'. é terrível, e eu faço o mesmo muitas vezes.
normalmente quem diz que estamos diferentes é quem normalmente está estagnado há muito tempo.
espero que nao te tenham dito isso com aquele ar de desilusao que normalmente acompanha essa frase...
o "estás diferente" foi mais dito num tom positivo. mas um positivo...ainda assim discutível.
ora bem. fui eu que te visitei a desoras? não me lembro do dia exacto em que o fiz, mas a história encaixa.
Se calhar, a Ana cumpridora de todas as regras, a Ana enleada em leituras ou a Ana um nome na pauta, não hesitaria em não hesitar e ficaria em casa a ler.. e são estas pequenas coisas q fazem a mudança...q positiva ou negativa, existe sempre na nossa vida...
VEra
sem dúvida, Vera. beijinho
e a mim não me respondes? pff.
olha, eu já te tinha respondido e não ficou aqui a resposta! que estranho...
mas foste tu, sim, senhora limona ;-) mas não foi a desoras. eu é que estava já desprogramada...eheheh!
ah bom. :)
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