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ana c., 2005
hoje acordei com os pés a norte e todo o resto do corpo a erguer-se a sul. ando há largos meses a beber da mesma saudade engarrafada. gole a gole, o copo não se esvazia. transborda. sim, o alentejo é um copo a transbordar de planície e não há corpo que já lhe resista. ressaco. passo as noites a suar o verão escaldante de agosto. uma injecção de melancolia dourada com salpicos de papoilas e girassóis e chilrear de aves e salvar-me-ia.assim padeço de uma doença crónica. adio o encontro que me trará o antídoto. adio o encontro como se adiasse a resposta a uma carta abandonada sobre o entulho da secretária.
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ana c., 2005
as saudades são desculpas para atrasar o tempo. essa espera de braços apoiados no parapeito da janela e olhos postos no caminho contrário ao início da planície.antes da curva havemos de olhar para trás.
quero regressar-te no pino do verão, com as ruas a escaldarem as faces e os cabelos amarelecidos de sol como as searas. quero surpreender a casa de porta aberta e desfazer o silêncio das paredes, do corredor longo até à sala, dos quartos.
sei que vais dar-me um beijo ainda que a tua barba me arranhe a pele macia do rosto. sei disso. e sei que haverá qualquer coisa ao lume. e muita luz. muita luz dessas traseiras onde crescem laranjas e rosas. e esqueço-me de mais o quê.
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ana c., 2005
será que ainda há pudins de morango e de chocolate, arroz doce ou fatias douradas no armário? uma ou duas gavetas abaixo, o baralho de cartas espanhol, já tão gasto de ensinares os netos. ainda consegues contá-los? se não tivesses partido também eu não lhes teria perdido o rasto. nem a casa acabaria fechada, trancada e sem luz.
chama-me do cimo das escadas.chama-me se adormecer na cama abandonada na cave. já deverei ter o corpo dorido do colchão mole. chama-me. deve ser hora do lanche.
tu que ainda falas, que sempre nos escreveste cartas. nós tão longe daí. quantos somos?
apesar deste exílio a norte, conta comigo.
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ana c., 2005
*craig armstrong feat. Bono,U2
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