Abandonamos fisicamente o lugar onde crescemos mas ele continua a deitar-se connosco. Por dentro. Do avesso. Mesmo na distância, ouvimos-lhe a voz. Trazemos na pele a marca dos dias por que passámos. Das ruas que atravessámos na eminência do atropelo. Dos campos onde jogámos à bola e às escondidas. Das árvores por onde queríamos escapar ao anoitecer. Desejámos tantas vezes que o sol não se escondesse. Queríamos dormir fora das casas onde os nossos pais nos esperavam à mesa do jantar. As janelas abriam-se sobre a cidade distante.Ali, ao alcance do corpo, campos de trigo e de papoilas onde nos deitávamos nas tardes de verão. Eu queria vestir manga curta quando vinham os primeiros raios de sol quentes da primavera. A minha mãe não deixava. Eu queria misturar-me com os outros na dança das brincadeiras de rua quando ainda havia lama nos sapatos se chovia. Quando ainda nos ríamos e desenhávamos a giz jogos no chão. O nosso bairro ficava na rota dos aviões e, nos bancos de escola, quem tinha orelhas grandes era obrigado a baixar a cabeça quando algum passava a rasgar o sossego. Eu não sabia que crescer tinha que ser abandonar essas ruas e perder o corpo pelas outras que se avistavam ao longe das janelas. Eu não sabia que me iriam custar tanto os regressos. E quando li este poema o tempo fez-se de novo lá atrás. E só quem lá esteve entenderá.
O jardim da Noémia
(Brandoa)
Ao redor da Árvore das crianças adultas
Há uma roda que tem dentes de homem,
Um escorrega que é uma lâmina que finda em queda,
Areia molhada com as cores da mentira.
Ao redor da Árvore das crianças adultas
Há um brinquedo de pneus que esconde braços plantados com seringas,
Um lago que borbulha de abortos de princesas,
Banquinhos vermelhos onde se sentam os mortos.
Subo a rua que tu desces.
Desço a rua que tu sobes.
Disparo balas com os dedos
Que te ferem de morte.
Os teus lábios vermelhos
São o meu primeiro rebuçado de sangue
E quando me apertas
Sinto que não me queres mal.
As coisas que disseste ao ouvido da minha boca são as coisas que
me irão fazer subir à Árvore das crianças adultas e nunca mais
descer para ao pé dos outros.
Fernando Ribeiro (Moonspell), Diálogo de vultos, Quasi
Fernando Ribeiro nasceu em Lisboa a 26 de Agosto de 1974. Cresceu na Brandoa e estudou Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa. É vocalista e letrista da banda Moonspell. Publicou três livros de poesia: Como Escavar um Abismo (2001), As Feridas Essenciais(2004), e o Diálogo de Vultos(2007). Escreveu as introduções para Os Melhores Contos de Howard Phillips Lovecraft, editado em 2005, e traduziu para português a biografia em BD Lovecraft. Escreve ainda para a revista de metal portuguesa LOUD! a coluna mensal intitulada The Eternal Spectator.
"Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
*Alberto Caeiro
segunda-feira, outubro 29, 2007
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9 comentários:
assino por baixo as frases que se podem assinar por baixo. pela segunda pele, por todas as segundas peles.
Um poema assim... só alguém que lá tivesse crescido!
Já não tenho a certeza... mas acho que o Jardim da Noémia fica ao fundo da rua onde ele morava.
Lindo!, o poema.
hum...não estava a conseguir identificar esse jardim.
o poema está cheio de metáforas fortes. mas realistas, sem dúvida.
Grande post, fantástico.
www.mesadaciencia.blogspot.com
Brandoa!! definitivamente so quem por ca passou sabe dar o devido valor a esta terra..
revi-me inteiramente nas palavras do Fernando, ate parecia q ele estava a fazer uma descriçao da minha infancia..
Por vezes quando tou só comigo msm e reflito, e' ai q chego a conclusao q tenha imensas saudades desses tempos..
gd post fernando um abraço de um vizinho teu
o post não é do fernando mas o poema sim. o abraço não sei se lhe chegar por esta via...
O poema lê-se, mas quem cresceu na Brandoa lê-se é no texto da Ana C. Mais? O toque da escola. Mais tarde, os sinos da Igreja. Os bombeiros e o toque do meio-dia. A cegonha no alto da chaminé da padaria. O cheiro a pão. O pôr do sol com o sol para trás do alto. O alto tem sempre muitas ruas por explorar. Algumas dão para o campo. A rua acaba e o campo começa. As ruas principais estão vagamente alcatroadas, as outras têm buracos e poças de água. Mais tarde vieram as escadinhas. O stôr Bragança joga ao cascalho meia-hora com os alunos. Sair da escola e ir para a rua. Chamar os amigos. fófiuuuuuuuuuuuuuu. A feira junto à escola preparatória. As regueifas e as entremeadas salgadas. No Verão, passar os dias na rua, ir vadiar para o trigo junto à rua da Paiã, onde há labirintos de Oliveiras e caniços. As hortas e os quintais, intermitentes com os prédios de 5, 6 e 7 andares sem elevador. Cuidado, ali na Serra, junto ao campo há ciganos. Não faz mal: o Russo, o Picha, o Gafanhoto e o Rui conhecem-me, a minha mãe já lhes deu roupa. O palácio. O palácio tem um barracão por trás que, dizem, já foi um cinema. Não sei, nasci em 1980. Nunca lá vi um filme. Nunca lá entrei. No Arco-Íris, há sempre drogados à porta, gostava de ir lá para dentro jogar, mas o Bacalhau está lá sentado e não me deixa, sou muito novo. Quando tiver idade, também já não vou querer lá ir. Aqui e ali há sempre uns cafés onde podemos jogar Street Fighter. Entras confiante, o dono pensa que tens idade. Subir às àrvores na creche junto às camionetas da LT, mas, cuidado, porque o Paixão anda sempre por aí. Ele não quer que se suba às àrvores. O polivalente serve para tudo. Os reformados jogam às cartas ao lado deste e sentam-se no largo nos dias de sol, logo pela manhã. A rua da Paiã vai dar à Parreirinha onde existe um monte de rocha branca suja com uma grande vista cá para baixo e para os casais lá para trás. Uma rua que dá para lá, tem o meu nome. Diogo Cão. Mas não gosto do Cão. Já chega.
BRANDOAAAAAAAAAAA!!!!!
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