era outro século aquele. era outro país. era outro regime. mas era. era a lei. e era o crime. e era a fuga. era o poder. os homens tinham o poder e havia mulheres que se atreviam a decidir. era outro século. mas tão perto. para quê fronteiras? para quê muros? era já ali. aqui.
e eu acumulei tensão do princípio ao fim. sentada na última fila, na cadeira mais próxima da porta...não fosse a vontade de fugir ser forte. ou as cólicas abdominais regressarem ao ponto de se tornarem insuportáveis. EMPURRAR PARA ABRIR. o estômago ficou num nó. Otilia e Gabita entraram-me carne dentro. bebi-lhes o medo, a raiva, o desespero, a coragem...bebi-lhes uma certa dose de inconsciência.
no fim, quis um cigarro mas não fumei. quis continuar sozinha. a falar sozinha. mas não me deixaram. havia marcas de chuva no chão. apeteceu-me caminhar à noite mas enfiei-me no carro. só parei em casa. estacionei o corpo na cozinha. agarrei na faca, tirei legumes do frigorífico e cortei-os. estive duas horas a cortar legumes. a enfiá-los em caixas e sacos. só depois consegui pensar em dormir. antecipei-me à insónia. antevi-lhe a facilidade de se interpor entre mim e o sonho. e dormi. o tempo que dormi, dormi.
Otilia e Gabita. sem máscaras. dois corpos à toa numa roménia fechada. nos seus autocarros velhos. nas suas casas frias. nas suas gentes simples. nas suas ruas escuras. dois corações em sobressalto.
e tudo assim, sem lugar para moralismos. sem julgamentos antecipados, nem tardios. apenas a evidência do poder. e o poder atravessa séculos, fronteiras, olhares. não se erradica com a facilidade com que a faca se encosta aos legumes e os decepa, uns atrás dos outros. o poder entranha-se como o medo. com o medo. viola-nos. faz-nos nascer a clandestinidade nos bolsos. encerra segredos. perante uns, dominado. perante outros, dominador. Otilia e Gabita.
o desfecho. o pacto. a promessa.
"Nunca mais voltaremos a falar sobre isto, está bem?"
hoje de manhã, o meu irmão abriu o frigorífico. e comentou: um bocado doentio isto, não?
o quê? os legumes cortados?
tivesses ido ontem ao cinema...
"Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
*Alberto Caeiro
terça-feira, fevereiro 19, 2008
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10 comentários:
um filme inadjectivável, enorme, imenso, o coração suspendeu-se e só volou a bater quando regressei ao frio da noite
Acho que o filme está sobrevalorizado, o que advém certamente do prémio em Cannes. De qualquer forma é um filme com grandes méritos. Uma das coisas que mais me impressionou foi o acto em si ser colocado como mais uma tarefa a realizar nesse dia, sem grandes momentos para reflexão, sem floreados, o que denota o enraízamento daquele acto na vida daquelas pessoas.
Outra coisa que me recordo do visionamento do filme foi ter ficado em suspenso várias vezes... literalmente sem respiração, como num filme de verdadeiro terror.
eu não acho que o filme esteja sobrevalorizado.considero-o realmente bom. claro que a minha opinião vale o que vale.
e se concordo que tudo é mostrado sem grandes floreados, não me passou a ideia de um acto banal, realizado de ânimo leve. mesmo a aparente apatia da protagonista do aborto não me parece fruto de uma desresponsabilização...
também eu fiquei esmigalhada por dentro depois de sair da sala de cinema.lembrei os quadros de Paula Rego, retratando tão dura realidade.senti-me em comunhão com a Olivia e a Gabita.acho que todas nós,raparigas, mulheres, sentimos.
o desempenho das actrizes é brutal e como tu, realço o despojamento de análises moralistas.
também não creio que o filme tenha sido sobrevalorizado. é um filme brutal, sobre um assunto difícil por ser difícil recriá-lo sem cair no cliché. há várias opções tomadas pelo realizador que são muito interessantes, como direccionar a amargura, o sufoco, o terror da experiência, essencialmente para a amiga, aquela que não faz o aborto. é ela quem mais o vive, é como se ela o tivesse feito. isso e outras coisas. mas isto tudo resume-se também a sensibilidades diferentes.
quanto ao que escreveste, ana, comento apenas isto: a história dos legumes é muito tua. atrofiadinha.
a menina limão sabe!
a tua resposta não foi a que escreveste aqui. que fique aqui registado, que a tua resposta foi bem mais de "mal disposta porque em vez de dormir, estive a cortar legumes durante duas horas". não os cortasses.
atrofiada *
ana, o facto de achar que o acto em si é mostrado sem floreados, de forma crua e dura, nao quer dizer que ache que tenha sido realizado de ânimo leve. referia-me à opção de realização com a qual concordo totalmente. também não acho que a aparente apatia revele uma espécie de desresponsabilização. Pelo contrário, acho essa opçao da realização perfeita no sentido de demonstrar uma prática que afinal era comum, mas também o medo que lhes ia na alma. Embora nao concorde com todos as opções do realizador (nomeadamente a necessidade de mostrar o feto).Mas claro que a apreciaçao do filme depende da sensibilidade de cada um.
E já agora fica aqui o que disse do filme quando o vi:
http://mr-robinson.blogspot.com/2008/01/4-meses-3-semanas-e-2-dias-de-cristian.html
Ontem cortei €12 de legumes.
vamos promover uma noite a cortar legumes. quem cortará mais rápido?
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