reparo que nesta altura do ano as pessoas andam confusas: ora vestem camisolas de lã, ora de algodão; há quem descubra os tornozelos nas suas calças à pirata e há quem marche de botas quase até aos joelhos... há também aquelas que se enrolam em lenços ou cachecóis.
eu ando há vários meses a tentar destapar o peito. que é como quem diz: o coração.
"Nada torna, nada se repete, porque tudo é real."
*Alberto Caeiro
domingo, outubro 29, 2006
para-dig-ma
©Az
páro no abrir de duas ou três janelas do esquecimento. do outro lado da rua um gato atravessa-me as arestas do tempo. há noite a escorrer pelos cabelos, lentamente, sem lua a serpentear os telhados das casas. na ponta do cigarro uma estrela. é verdade. colecciono despedidas nas raízes dos dedos e ninguém, mas ninguém mesmo, me salva da vontade de partir.
nessa fracção de íntimo recolher de salivas e desejos não sou cais nem âncora. crescem-me caminhos nos pés. absurdo paradigma de nunca chegar.
sexta-feira, outubro 27, 2006
A Cidade Líquida
Apresentação no Clube Literário do Porto, Sábado, 28 de Outubro de 2006, 18h00
A cidade movia-se como um barco. Não. Talvez o chão se abrisse em algum lado. Não. Era a tontura. A despedida. Não. A cidade talvez fosse de água. Como sobreviver a uma cidade líquida?
(Eu tentava sustentar-me como um barco.)
As aves molhavam-se contra as torres. Tudo evaporava: os sinos, os relógios, os gatos, o solo. Apodreciam os cabelos, o olhar. Havia peixes imóveis na soleira das portas. Sólidos mastros que seguravam as paredes das coisas. Os marinheiros invadiam as tabernas. Riam alto do alto dos navios. Rompiam a entrada dos lugares. As pessoas pescavam dentro de casa. Dormiam em plataformas finíssimas, como jangadas. A náusea e o frio arroxeavam-lhe os lábios. Não viam. Amavam depressa ao entardecer. Era o medo da morte. A cidade parecia de cristal. Movia-se com as marés. Era um espelho de outras cidades costeiras. Quando se aproximava, inundava os edifícios, as ruas. Acrescentava-se ao mundo. Naufragava-o. Os habitantes que a viam aproximar-se ficavam perplexos a olhá-la, a olhar-se. Morriam de vaidade e de falta de ar. Os que eram arrastados agarravam-se ao que restava do interior das casas. Sentiam-se culpados. Temiam o castigo. Tantas vezes desejaram soltar as cordas da cidade. Agora partiam com ela dentro de uma cidade líquida.
(Eu ficara exactamente no lugar de onde saiu.)
A Cidade Líquida, de Filipa Leal
A cidade movia-se como um barco. Não. Talvez o chão se abrisse em algum lado. Não. Era a tontura. A despedida. Não. A cidade talvez fosse de água. Como sobreviver a uma cidade líquida?
(Eu tentava sustentar-me como um barco.)
As aves molhavam-se contra as torres. Tudo evaporava: os sinos, os relógios, os gatos, o solo. Apodreciam os cabelos, o olhar. Havia peixes imóveis na soleira das portas. Sólidos mastros que seguravam as paredes das coisas. Os marinheiros invadiam as tabernas. Riam alto do alto dos navios. Rompiam a entrada dos lugares. As pessoas pescavam dentro de casa. Dormiam em plataformas finíssimas, como jangadas. A náusea e o frio arroxeavam-lhe os lábios. Não viam. Amavam depressa ao entardecer. Era o medo da morte. A cidade parecia de cristal. Movia-se com as marés. Era um espelho de outras cidades costeiras. Quando se aproximava, inundava os edifícios, as ruas. Acrescentava-se ao mundo. Naufragava-o. Os habitantes que a viam aproximar-se ficavam perplexos a olhá-la, a olhar-se. Morriam de vaidade e de falta de ar. Os que eram arrastados agarravam-se ao que restava do interior das casas. Sentiam-se culpados. Temiam o castigo. Tantas vezes desejaram soltar as cordas da cidade. Agora partiam com ela dentro de uma cidade líquida.
(Eu ficara exactamente no lugar de onde saiu.)
A Cidade Líquida, de Filipa Leal
quinta-feira, outubro 26, 2006
"Mais dois, três livros e pararei"
(...) e regressava ao caixão para estender-se nele, o arbusto de groselha iluminava o muro e anulava-se em seguida, ao iluminar o muro um tijolo despontava do reboco e adivinhava-se o postigo da arrecadação em que uma panela eléctrica avariada e cebolas que grelaram, a minha filha de volta a casa comigo, dois passos meus, três passos dela, um cachorro a farejar memórias e a minha filha a puxar-me a saia
- O bicho vai morder-nos mãe
até as memórias (...)
António Lobo Antunes, pre-publicação, Ontem não te vi em Babilónia, JL
- O bicho vai morder-nos mãe
até as memórias (...)
António Lobo Antunes, pre-publicação, Ontem não te vi em Babilónia, JL
segunda-feira, outubro 23, 2006
Eco y Narciso, 1905. Fragmento John William Waterhouse
"Tirésias previra que Narciso viveria longos anos se não se conhecesse a si mesmo, mas obcecado pela sua beleza o jovem deus acabou por sucumbir. É, assim, perigoso conhecer-se a si mesmo - e podemos morrer por causa disso, deixando que o nosso "adeus" seja repetido por Eco, essa deusa triste, incapaz de dizer a primeira palavra. Ainda hoje, aqueles que são incapazes de dizer a primeira palavra são os que se apaixonam facilmente por Narciso."
Montesquieu, Elogio da Sinceridade
sábado, outubro 21, 2006
CM
Soletrar devagar todas as sílabas
no gosto compassado de contar
uma história com seus fonemas lentos
seus milhafres pousados no crepúsculo
suas casas de brancos teoremas.
Alentejo devagar.
Como os poemas.
Manuel Alegre
sexta-feira, outubro 20, 2006
quarta-feira, outubro 18, 2006
de profundis amamus
Wyeth
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não
faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso
sempre, sempre Cesariny. podem passar muitos séculos.
segunda-feira, outubro 16, 2006
Last Goodbye
This is our last goodbye
I hate to feel the love between us die
But it's over
Just hear this and then I'll go :
you gave me more to live for,
more than you'll ever know.
This is our last embrace,
must I dream and always see your face
Why can't we overcome this wall
Baby, maybe it is just because I didn't know you at all.
Kiss me, please,
Kiss me
But kiss me out of desire, babe, and not consolation
You know,
it makes me so angry 'cause I know that in time
I'll only make you cry, this is our last goodbye.
Did you say no, this can't happen to me,
and did you rush to the phone to call?
Was there a voice unkind in the back of your mind saying,
maybe... you didn't know him at all.
Well, the bells out in the church tower chime
Burning clues into this heart of mine
Thinking so hard on her soft eyes and the memory
Of her sighs that, it's over... it's over...
a minha preferida, ao vivo ou em estúdio...
sábado, outubro 14, 2006
"Não se morre de desejo mas não se regressa igual"
Há uma irreparável decepção quando um homem encontra uma sereia. Isso acontece muito raramente. Podemos, no entanto, suspeitar se um vizinho no prédio volta a casa no fim do verão, com a família e os cães, e há nos olhos de todos qualquer coisa de alguém cuja visão se desfocou. Ele deixou crescer a barba e passa as noites na varanda de trás, comprometendo o seu papel de pai e o emprego. E os filhos, os cães e a mulher perderam a memória do contrato com que antes dividiam os espaços. Andam em roda, com pequenos empurrões.
Porque houve uma viagem combinada com pescadores, até ao alto-mar. E a família ri-se, quando ele volta, pálido e sem vontade de comer. Todos conhecem as histórias do enjoo. Está ali o desastre e ninguém sabe. O pai nunca mais olha para ninguém.
(...)
Hélia Correia, Bastardia
sexta-feira, outubro 13, 2006
©Az
Ainda que os telhados sejam frágeis, eu vou. E se chover, tanto melhor. Há a possibilidade da queda. Escorregar pelo dorso das casas até os braços de alguma árvore me ampararem. Uma dúvida talvez: sem o teu olhar por perto onde inventar estrelas antes do anoitecer?
Quero ser um gato em passo lento pelo avesso das casas para espreitar todas as janelas antes de se lhes apagar o sol. E ainda afiar as unhas na lã dos teus cabelos ausentes.
quarta-feira, outubro 11, 2006
Dialéctica
Não vale a pena o silêncio,
nem as luzes foscas numa névoa nórdica,
nem esse cais que entra por dentro da alma,
nem o bater de asas sem nada em volta,
nem as nuvens que se foram sem que chovesse,
nem um deus,
nem a mancha de ferrugem nos dedos,
nem a transparência da água:
o que vale a pena
é o ruído de vozes por entre o fumo,
o sol que rompe pelo inverno,
as ondas contra o limite das falésias,
um voo nítido e puro,
o tempo,
a erosão das margens,
o furor dos rios com a primavera.
E, ainda o teu riso
melancólico
quando a noite começa.
Nuno Júdice
©Az
Ontem a minha lua estava assim, pousada no tecto da sala. E eu entretive-me a contar os pêlos dos gatos e a enrolar a língua em mortalhas para fumar tabaco com sabor a cereja.Apesar de tudo, detesto mon cherry.
nem as luzes foscas numa névoa nórdica,
nem esse cais que entra por dentro da alma,
nem o bater de asas sem nada em volta,
nem as nuvens que se foram sem que chovesse,
nem um deus,
nem a mancha de ferrugem nos dedos,
nem a transparência da água:
o que vale a pena
é o ruído de vozes por entre o fumo,
o sol que rompe pelo inverno,
as ondas contra o limite das falésias,
um voo nítido e puro,
o tempo,
a erosão das margens,
o furor dos rios com a primavera.
E, ainda o teu riso
melancólico
quando a noite começa.
Nuno Júdice
©Az
Ontem a minha lua estava assim, pousada no tecto da sala. E eu entretive-me a contar os pêlos dos gatos e a enrolar a língua em mortalhas para fumar tabaco com sabor a cereja.Apesar de tudo, detesto mon cherry.
segunda-feira, outubro 09, 2006
radar (1)
Há noites assim não de outra coisa
que são de si mesmas cheias
até ser insuportável
até cada corpo cheirar exactamente
ao cheiro da sua alma. Há noites assim
que somos nós: Deus nos defenda
de tanta noite haver por dentro
por fora de nós mesmos.
Bernardo Pinto de Almeida
sábado, outubro 07, 2006
sexta-feira, outubro 06, 2006
caem penas do azul
©Az
mais do que as folhas que do alto caem
mas sem sol grande as aves não se movem
nem já não caem com a calma as aves
gastão cruz
quinta-feira, outubro 05, 2006
Clareira
através de que perguntas, de que respostas
se regressa às partes inseparáveis?
josé tolentino mendonça
©Az, Porto
há dois anos a aprender os telhados, o céu e os braços de árvores desta cidade...
se regressa às partes inseparáveis?
josé tolentino mendonça
©Az, Porto
há dois anos a aprender os telhados, o céu e os braços de árvores desta cidade...
quarta-feira, outubro 04, 2006
segunda-feira, outubro 02, 2006
viagem ao centro da pele
©Az, os gatos Teresa e Simão
Em cada acto de amor,
a despedida
Boaventura de Sousa
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