era noite na rua que sempre descia de olhos postos no chão e dedos agarrados aos cigarros que outras bocas rejeitaram antes do fim. era noite. de olhos postos no chão, descobriu por entre as rodas de um carro três pães debicados pelos pássaros da tarde. recolheu-os. esqueceu as pontas de cigarro. os bolsos eram demasiado pequenos. a boca não.
sábado, outubro 18, 2008
Por que é que fodemos o amor? Porque não resistimos. É do mal que nos faz. Parece estar mesmo a pedir. De resto, ninguém suporta viver um amor que não esteja pelo menos parcialmente fodido. Tem de haver escombros. Tem de haver esperança. Tem de haver progresso para pior e desejo de regresso a um tempo mais feliz. Um amor só um bocado fodido pode ser a coisa mais bonita deste mundo.
MEC, O amor é fodido
quinta-feira, outubro 16, 2008
eu sabia respirar-te por entre os dedos trémulos das manhãs.
No one will ever save you if no one can ever find you
de tanto inclinares o corpo para o medo tropeçaste nesse quarto vermelho que trazes no peito. suspeito de crimes desmesurados nele cometidos escritos a meia-luz com metade dos teus dias. deixa apenas um pouco menos de silêncio à porta e espera por mim. abrirei as mãos para te revelar o fim da história.
Que a noite nos deixe chover e estar à chuva. Nenhum manto que não seja a neve ou os teus cabelos se vieres crescer à beira das ondas.
Não nos falem do frio por ser Inverno. As árvores despidas não cobrem o sexo.
Catarina Nunes de Almeida, A metamorfose das plantas dos pés
escrevo-te do fundo da rua. são 18h41. ouvem-se as gaivotas. a calçada está molhada. e eu trouxe o teu bilhete comigo. nunca ninguém, nem eu, conseguiu expressar tão bem a ambivalência de se viver numa cidade e ter quem ainda nos prenda noutra.
acordei com as tuas palavras e ainda não consegui distrair-me delas. gosto da forma como inclinas o G e escreves viagem como quem procura abraçar algo mais do que um pedaço de papel. é domingo. e não me sai da cabeça esta ideia de que o Porto podia ser no final da nossa rua...
"Sabes que não há conforto como na casa dos pais. Tenho saudades. Mas o Porto podia ser no final da nossa rua."
sexta-feira, outubro 10, 2008
karin szekessy
no avesso das pálpebras abertas as mãos alguma coisa de nós de fora
rente à boca do sol engole-me despenteada de vestes coração cabisbaixo
a derramar a língua pelos telhados gelados da noite
Bendito sejas tu, Nero, entre os pássaros. A tua asa: apêndice das grandes cidades - nunca foste um lugar de salvação. Bendito sejas tu, Nero, entre lençóis exaustos. Bendito sejas tu enquanto repetes: desenlacemos as mãos, Lídia, lancemos estas mãos ao mar - alguém cumprirá por nós as promessas.
Catarina Nunes de Almeida A metamorfose da planta dos pés, deriva
sábado, outubro 04, 2008
Ao fim de quatro anos, o Porto é o que é. E eu sou o que sou. E isto é o que hoje é.
Ao fim de quatro anos, a minha teimosia reforça-se. E por cá vou ficando.
quarta-feira, outubro 01, 2008
A geografia da casa altera-se. Agora habitamos do outro lado. No mesmo país. A sul dos mapas que desbotam ao relento dos invernos.
Pouco sei sobre o efeito do isolamento das paredes.
Mas contentemo-nos com a certeza do resvalar de gaivotas pela noite. E com o ranger dos telhados pelo vento.
Não era apenas o olhar. Era também a boca. A forma como entalava o cigarro entre os lábios. O sorriso de soslaio. A pose cinematográfica. A lucidez das interpretações. Tive uma paixão pelo Paul Newman e acabei por me apaixonar pelo miúdo do liceu mais parecido com ele. Ainda hoje guardo uma foto do miúdo loiro de olhos azuis de nome demasiado longo para me ter esquecido dele. A paixão pelo miúdo esgotou-se. A paixão pelo actor perdurou. Tudo o que é impossível dura mais. E durará, certamente, para além disso que dizem que é o fim.
preciso de uma coisa tão banal como sentar-me à beira dos meus gatos, pegar num livro, pensar nos amigos com quem não estou, beber um chá ao som de tindersticks ou de spain, escrever um poema, desarrumar um pouco mais a estante dos cds, depois a dos livros, desfazer a cama para dormir - em vez de deitar-me sem ter tido sequer tempo de a fazer -, sair para a tarde e fotografar janelas...acordar sem esta sensação de que o dia vai chegar demasiado cedo ao fim e que nem consegui respirar-lhe a luz.
a entropia é a minha religião. alterno a leitura da bíblia com a interpretação de mapas e mãos. bebo, preferencialmente, azul. tenho, ainda, o hábito de escrever cartas_